Por Por Luiz Fábio Alves Jales - lfajales@ig.com.br
Letônia... um pequeno país da Europa setentrional, banhado pelas águas geladas do Mar Báltico. Sua capital, Riga, que já havia dado ao mundo o talentoso e revolucionário Nimzovitsch, foi o berço de um dos mais brilhantes enxadristas de todos os tempos: Mikhail Nekhemievich Tal. Ele é reverenciado até hoje por ter sido um exímio jogador tático, um perito na arte das combinações, sem dúvida sua marca registrada.
Tal nasceu em 09 de novembro de 1936, no seio de uma família de origem judia; aliás, muitos dos melhores jogadores de xadrez da história eram judeus ou descendentes de judeus: Steinitz, Tarrasch, Rubinstein, o já citado Nimzovitsch, Lasker, Botvinnik, Bronstein, Reshevsky, Fischer, Gelfand, Kasparov (o maior de todos) e vários outros mais.
Vista da cidade de Riga, capital da Letônia
Desde muito cedo, o pequeno Misha deslumbrava a todos com sua inteligência e memória prodigiosas. Aos três anos de idade ele já lia com perfeição, e aos cinco multiplicava de cabeça números com três dígitos. Conta-se que, quando ele tinha sete anos, após assistir uma palestra dada pelo pai na faculdade de medicina onde este lecionava, o garotinho foi capaz de reproduzi-la inteira, palavra por palavra, ao chegar em casa.
Com um cérebro assim privilegiado, o adolescente Tal passou rapidamente pelo ensino médio e com apenas 15 anos já estava frequentando os bancos escolares da Faculdade de História e Filologia da Letônia, na qual ingressou para estudar língua e literatura russa.
Tendo começado a jogar xadrez na infância, com sete anos, Mikhail Tal fez rápidos progressos; aos 14 anos estreou no campeonato da Letônia, aos 17 obteve o título de mestre e aos 20, ao mesmo tempo em que venceu pela primeira vez o campeonato da URSS (iria conquistá-lo mais cinco vezes), tornou-se grande mestre, um dos mais fortes daquele país.
Comparado a Morphy pelo brilhantismo do seu jogo e pela ascensão fulgurante, a trajetória de Tal rumo ao topo do xadrez teve o furor de um meteoro que ofuscou a todos os adversários em sua passagem. Em 1958, ele venceu o Interzonal de Portoroz, e no ano seguinte venceu também o Torneio de Candidatos jogado na Iugoslávia, obtendo assim o direito de disputar o título mundial contra o então campeão, Mikhail Botvinnik.
De forma surpreendente, o match disputado em Moscou, em 1960, terminou com a sensacional vitória do desafiante, por 12,5 x 8,5 (+6,=13,-2), o qual sagrou-se, merecidamente, o oitavo campeão mundial de xadrez, com apenas 23 anos de idade, um recorde que só seria derrubado um quarto de século mais tarde, quando Kasparov arrebatou de Karpov a coroa, com um ano a menos que Tal.
Na ocasião da disputa entre Tal e Botvinnik, o patriarca da escola enxadrística soviética não pôde fazer frente ao jogo impetuoso, ousado e “irracional” do seu oponente, e além da dolorosa capitulação, o soberbo mestre do xadrez posicional assistiu os sólidos princípios estratégicos sobre os quais ele assentara seu jogo ruírem perante a força do “furacão” Tal.
De fato, o estilo de jogo do grande mestre letão era único e inconfundível: quer manejasse as brancas, quer as pretas, Tal jogava agressivamente, visando obter posições dinâmicas nas quais sua magnífica visão combinatória pudesse desequilibrar a partida a seu favor. À maneira do lendário Alekhine, Tal costumava lutar pela iniciativa desde o começo, muitas vezes descuidando-se da defesa e incorrendo em sérios riscos; dessa forma, ele era capaz de criar posições tão complicadas e cheias de tensão, que boa parte de seus adversários, desnorteados e amedrontados com o ímpeto dos ataques, não conseguiam defender-se corretamente e eram vencidos.
A sua habilidade em realizar imprevisíveis sacrifícios era verdadeiramente fenomenal. Dotado de uma extraordinária capacidade de cálculo e de uma imaginação criadora ímpar, a Tal não importava o equilíbrio material ou posicional, e sim a possibilidade de efetuar golpes táticos desconcertantes, cuja profundidade não era compreendida pelo raciocínio lógico e cartesiano dos seus antagonistas. As belas combinações e ataques por ele idealizados pareciam obras de magia, os quais, além de lhe valerem o epíteto de “O Mago de Riga”, provocaram o deleite dos seus inúmeros fãs espalhados ao redor do mundo.
É sabido que parte das combinações executadas pelo “mago” era produto não de um cálculo concreto, e sim de pura intuição. Por isto mesmo, muitas dessas combinações não eram de todo corretas, mas geralmente só se descobria isso nas análises post-mortem: durante o calor da partida era difícil para os oponentes encontrarem uma refutação.
Uma vez de posse do título mundial, Tal deu mostras de sua simplicidade e caráter amistoso. Ao contrário do campeão anterior, o sisudo Botvinnik, que parecia querer proteger seu título dentro de uma redoma de cristal, o novo campeão era visto jogando xadrez relâmpago com pessoas comuns, pelo simples prazer de jogar.
Seu reinado foi o mais curto da história do enxadrismo mundial, durando precisamente um ano e cinco dias. Em 1961, Botvinnik, num match-revanche, recuperou o título de campeão, por um placar de 13 x 8 (+10,=6,-5). Muito se comentou a respeito das precárias condições de saúde de Tal durante a disputa desse segundo confronto. Informações dão conta de que poucos dias antes do início do match ele saíra do hospital, onde havia sido submetido a uma cirurgia, e por isto mesmo, não teve como preparar-se adequadamente para defender seu título.
Devo salientar que a saúde de Tal sempre foi um empecilho para que este atingisse sua melhor forma enxadrística. Por muitos anos ele foi atormentado por uma enfermidade renal, agravada pelo abuso de álcool e, principalmente, de fumo. Ao longo de sua vida, Tal passou por 12 cirurgias, tendo que inclusive retirar-se do Interzonal de Curaçao, em 1962, a fim de ser levado às pressas para a mesa de cirurgia. Em virtude do distúrbio nos rins e da sua negligência com a própria saúde, o auge da carreira de Tal durou apenas três anos, de 1958 a 1961. Isto é algo realmente lamentável, pois com a genialidade que lhe era inata, se ele dispusesse de uma maior capacidade de trabalho e de uma saúde robusta, aonde poderia ter chegado?
Não obstante tais dificuldades, Mikhail Tal seguiu jogando até o final de sua vida, ganhando diversos torneios e mantendo-se invicto em longas séries de partidas oficiais. O modo de jogar agudo e agressivo da juventude, com o passar do tempo deu lugar a um estilo mais equilibrado, posicional e técnico, correspondente à sua fase madura, mas sem perder a ousadia, a criatividade e a habilidade tática.
Apesar de ser um jogador implacável diante do tabuleiro, longe dele Mikhail Tal era uma pessoa amável e simpática. Inteligente e possuidor de um refinado senso de humor, sempre rindo e proferindo gracejos, Mishaparecia ser dotado de uma aura de magnetismo pessoal que cativava todos a seu redor. Era querido por seus colegas enxadristas e demais pessoas que o conheciam, apegado à família e aos amigos, e desapegado ao dinheiro e aos bens materiais. Sua grandeza de espírito parecia fazê-lo incapaz de sentir inveja ou de nutrir qualquer outro sentimento mesquinho, mesmo num universo tão competitivo quanto o da elite do xadrez!
Infelizmente, esse gênio do tabuleiro nos deixou muito cedo: no dia 28 de junho de 1992 ele faleceu num hospital de Moscou, aos 55 anos de idade. Tal, que é o meu ídolo no xadrez, tanto pelas qualidades de seu jogo quanto pelas suas qualidades humanas, conseguiu, com a beleza de seus sacrifícios, a intrepidez de seus ataques e a complicação das posições que criava, abalar os pilares do jogo posicional e exercer notável influência no desenvolvimento do pensamento enxadrístico na segunda metade do século XX. Como seu fã, eu não poderia deixar de prestar-lhe uma homenagem pela passagem do vigésimo aniversário de sua morte, rendendo o justo tributo à sua memória.
No entanto, por mais que eu teça elogios à sua pessoa, estes jamais serão tão autênticos quanto os comentários sobre Tal feitos pelos companheiros que com ele conviveram; assim sendo, para finalizar estas linhas, reproduzirei abaixo alguns testemunhos de insignes enxadristas em relação ao inesquecível “Mago de Riga”:
Só há um Mikhail Tal no mundo (GM Samuel Reshevsky);
Tal é um incrível fenômeno no xadrez. Podem acreditar em mim, porque em meu tempo vi muitos talentos (GM Max Euwe);
[Tal] era um autêntico virtuoso: obtinha prazer confiando em sua fenomenal visão combinatória, e em cada partida encontrava soluções paradoxais (GM Mikhail Botvinnik);
[...] seu estilo de jogo era inimitável, posto que é impossível copiar a forma de jogar de um gênio. Tal é o único jogador que eu me lembre que não calculava longas variantes, ele simplesmente as via! Centenas de fantásticas combinações desfilavam continuamente em seu cérebro, e sua imaginação não conhecia limites (GM Garry Kasparov).
REFERÊNCIAS
FILGUTH, Rubens. Inteligências em confronto: campeonatos mundiais de xadrez. Porto Alegre: Artmed, 2006.
__________. Xadrez de A a Z: dicionário ilustrado. Porto Alegre: Artmed, 2005.
KASPAROV, Garry. Meus grandes predecessores, volume 2. Trad. de Giovanni Vescovi. Santana de Parnaíba (SP): Solis, 2005.
MANZANO, Antonio López; GONZÁLEZ, José Monedero. O xadrez dos grandes mestres: 400 conselhos para melhorar seu nível enxadrístico. Tradução de Abrão Aspis. Porto Alegre: Artmed, 2002.
Fonte: Clube de Xadrez.
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