Na primeira entrevista do
ano, o Blog Xadrez Piraí entrevista Gláucio Dalla Cortt Cella, que notabilizou-se no
meio enxadrístico ao derrotar nada mais nada menos do que o atual campeão
mundial Magnus Carlsen, em partida simultânea realizada em Caxias do Sul no dia
07 de março. O evento fez parte da XIII Festa da Uva, competição tradicional do
calendário esportivo brasileiro. A Festa da Uva tem se destacado por trazer
sempre grandes jogadores para fazer parte do espetáculo, do cenário internacional já passaram por Caxias como convidados, Ivanchuk e Polgar. Neste ano, a vinda do Campeão Mundial e número um do mundo
foi um enorme atrativo.
Gláucio nos conta como foi
enfrentar o campeão e o melhor, vencer. E fala ainda sobre seu projeto “Lance
Mágico”. Sem a pretensão de ser um jogador
profissional o enxadrista de Francisco Beltrão segue sua rotina estudando para
concursos, mas sem abandonar a nobre arte.
1. O que o levou a jogar xadrez?
Comecei a jogar xadrez aproximadamente
com 7 anos, minha mãe me ensinou, e ensinou errado, disse que o peão capturava
para frente, por exemplo, não gostei de cara do jogo, somente em 1999 quando
tinha 11 anos é que despertei interesse pelo esporte, foi quando um professor
de Educação Física em vez de simplesmente largar o tabuleiro para as crianças
jogarem, passou um problema de mate em 2, era um corredor de torre, eu como não
tinha técnica nenhuma e nem paciência não consegui responder, fala a verdade
ninguém da sala conseguiu, quando eu soube da resposta, eu fiquei louco, era
muito simples e lógico, foi ai que levei como desafio e quis aprender e
desvendar o jogo. Foi paixão a segunda vista.
2. Você teve a chance de enfrentar um dos maiores nomes do xadrez em
todos os tempos. Muitos gostariam de estar no seu lugar naquela partida
inesquecível contra o genial Magnus Carlsen. Conte-nos como você ficou sabendo
do evento em Caxias do Sul e qual foi sua reação ao saber que Carlsen estaria
no evento?
Eu já havia participado em 2010
quando Ivanchuk veio, naquela época eu estava treinando forte, fiz um bom
torneio, vencendo inclusive o MI Vinicius Martins e só não terminei bem
colocado porque não pude jogar a última rodada, ficou aquele gostinho de quero
mais, torneio super organizado, cidade bonita, Festa da Uva, celebridades por
todos os lados, e um clima amistoso festivo, bem diferente do continental
(único outro evento já realizado nessa mesma dimensão) só quem foi sabe do que
estou falando. Quando a Polgar veio, eu estava em Curitiba atolado nos estudos
e infelizmente não pude ir. Então, meu amigo Rodrigo Merlo disse que o Carlsen
viria ao Brasil na festa da uva, corri ver, difícil de acreditar, o Melhor do
Mundo, um torneio aberto, então descobri que teria simultânea, fiquei
alvorecido. Achei o valor caro quando vi mas depois pensei, nossa, quando terei
outra oportunidade dessa na vida... Corri fazer a inscrição e só depois dei
conta do que estava acontecendo. Eu, um amador do interior do Paraná, iria
jogar contra um campeão Mundial de Xadrez em exercício, e não contra qualquer
campeão e sim contra o maior elo da história, no auge, que honra.
3. Você, certamente, entrou para a história do xadrez nacional, ao
tornar-se o primeiro, e talvez único, brasileiro a derrotar um campeão mundial
no auge. Você se preparou para enfrentá-lo?
Pode ser difícil de acreditar,
mas não me preparei nem para a festa da uva nem para o Paranaense sub 26. Meu
objetivo maior em participar destes dois eventos era de divulgar o xadrez na
região, lançando notícias no jornal, para ajudar a promover o projeto Lance
Mágico. Claro que sabia quem eu iria enfrentar, conhecia seus pontos fortes e
fracos, torci muito para ele ser campeão mundial, vi todas as partidas, e é o
meu grande ídolo na atualidade do xadrez, Antes dele surgir eu gostava do
Kramnik, mas o Carlsen é diferente, meu estilo e o dele são próximos, menos
preocupação na abertura e mais no cálculo, chegar rapidamente a posições nunca
antes jogadas, e principalmente criar, claro que as semelhanças param ai, é
outro nível outro mundo, e outra forma de ver as coisas. Na tarde que antecedeu
a partida olhei rapidamente a base de partidas dele no chesstempo e vi que ele
jogava mais Ruy Lopes, dei uma olhada na variante fechada, só queria não perder
na abertura. Mas na partida ele jogou 1.Cf3 e naquele instante caiu a ficha de
que estava diante do melhor jogador do mundo e não tinha a mínima ideia do que
responder, mas como eu sempre digo, a maioria dos males vem para o bem, a partir
do primeiro lance dele eu só tinha uma meta, jogar contra um humano-computador
da melhor forma possível. Não olhei mais pra ele e joguei o melhor que pude...
4. O que esperava do jogo? Em que momento você
sentiu que estava com a partida ganha?
Como a maioria dos simultanistas,
meu objetivo principal era não perder na abertura, que é o meu maior déficit,
sempre priorizei o cálculo e o xadrez em si, deixei a decoreba de aberturas de
lado, pois tenho a visão que elas não fazem você jogar melhor e sim apenas
vencer mais partidas. Se você quer ser competitivo, estude a fundo aberturas,
se você quer desenvolver habilidades foque resolução de problemas. Prefiro ver
o que meu adversário joga de abertura e preparar algo pra tirar ele do conforto
do que jogar sempre a mesma variante da mesma maneira. Talvez o único que
sinceramente acreditava em um resultado positivo antes do jogo fosse o MF
Alfeu, já que venceu a Polgar na Simultânea
e empatou no torneio em 2012, ainda mais depois do e4 respondido por e6, e ele
estava na sua zona de conforto. Os outros como eu, queriam durar bastante, e
poder quem sabe guardar a partida num quadro, só de jogar já nos sentíamos uma
celebridade. É difícil dizer como tudo aconteceu, sei que após a abertura
quando pela primeira vez em uma partida pensada joguei Bg4 e ele tomou com o
estranho bxc3, eu sabia que precisava de algo milagroso, sabia que seria
massacrado aos poucos contra um Carlsen agressivo e um xadrez concreto, pois
não conhecia nada do desdobramento daquela posição, então pensei em algo novo e
criativo, e enxerguei o Lance Mágico 8... e5, a partir dali eu senti que tirei
o Gênio da zona de conforto, dando uma preocupaçãozinha a mais para ele, e
então joguei mais tranquilo, era como se intimamente eu sentisse que toda a
vantagem que ele tinha por conhecer mais aberturas, e por calcular melhor tinha
ido pro espaço, porque estávamos numa posição única, numa simultânea. E joguei
a partir dali contra mim mesmo, mas claro que ainda era um amador contra o
campeão mundial, contra o ídolo. Falar em ficar ganho é difícil, é melhor dizer
vantagem decisiva, porque um cara com os recursos que o Carlsen tem, pode
reverter partidas tidas como completamente perdidas. Eu senti que estava melhor
após jogar Tb4...
5. Caso, em algum momento da partida, Carlsen
tivesse feito proposta de empate, você teria sangue frio para rejeitar?
No momento que joguei minha torre
em b4, eu já sabia que podia vencer, mas sabia que ainda tinha chão, que não
seria fácil, mas confesso que poucas vezes senti-me tão bem jogando uma partida
e tão confiante, como eu falei, eu esqueci que estava enfrentando o melhor do
mundo eu estava jogando contra mim mesmo, procurando sempre o melhor lance,
então a partir daquele momento eu dificilmente aceitaria empate, aliás eu não
ofereceria empate. Pois, caso ele oferecesse, seria complicado dizer não, não
pela partida, porque eu não tinha medo de perder, mas por respeito ao ídolo,
que reconhecendo a inferioridade na
posição antes de ficar completamente perdido teria oferecido empate, acho que
se fosse assim nós dois sairíamos como vencedor, eu tenho este lado empático de
tentar me colocar no lugar do outro. Infelizmente ou felizmente isto não
ocorreu, e depois disso foi história. E deve ser feito a ressalva que se fosse
a última partida com ele sentado a minha frente jogando 5x5 ou 3x3, ficaria
difícil não ser enrolado, portanto dependendo de como estivesse a partida teria
que oferecer empate. Mas na posição que ele abandonou, eu estando com uma torre
a mais e um peão na sétima, preferia perder do que oferecer ou aceitar empate.
6. Com a vitória
sobre Carlsen, você tornou-se uma especie de celebridade do esporte, a mídia o
tem procurado e muito. Como tem reagido a este assédio?
Estou fazendo o possível para
administrar as coisas, sinceramente nunca pensei em ser profissional, e dificilmente isso vai mudar, acredito que
nasci para inspirar outras pessoas mas não para ser propriamente um ídolo do
esporte, prefiro ser admirado pela maneira como faço as coisas e não por tê-las
feito, acho que no fundo queria ser um pouco professor como Wilson ou o Jerry,
que são pessoas que todos os dias mudam a vida de inúmeras outras pessoas.
Nem facebook não tenho, acho que
toma um tempo desnecessário e só nos afasta das pessoas, sem contar na invasão
gratuita de privacidade, penso que as pessoas estão cada vez mais parando de
vivenciar e de sonhar, para apenas admirar e reproduzir.
Só que de outro lado tem o
Xadrez, tem o Lance Mágico, tem a vontade de tornar o esporte popular e isso é
maior do que eu, é maior do que eu posso querer pra mim, então eu me deixo de
lado, e tento pensar no que os outros fariam, pois foi me concedida uma
oportunidade única, poucas vezes o xadrez foi tão exposto na mídia, tento
sempre nas entrevistas falar dos benefícios do esporte, e ressaltar que sou um
amador, na esperança de motivar outras pessoas a fazerem feitos incríveis e a
se interessarem pelo xadrez e pelos benefícios que ele traz, mas
inevitavelmente a promoção pessoal vem junto, o que é ruim, pois fica um clima
ruim com os jogadores profissionais, que já conquistaram muito mais coisas e se
consideram mais merecedores desta atenção do que eu.
7. Como foi sua chegada em Francisco Beltrão após tal proeza? Este
feito irá ajudá-lo no desenvolvimento do xadrez em sua cidade?
As coisas mudaram muito por aqui,
fui bastante prestigiado pela imprensa local, por amigos, por pessoas que não
conhecia, acho que cada beltronense no fundo ficou orgulho disso, vou até
receber uma placa na câmera de vereadores. No fundo as homenagens não
significam grande coisa para mim, como dizia Aristóteles, “a grandeza não
consiste em ganhar honras, mas sim merece-las”, mas significa muito para o
xadrez, quando poderíamos imaginar que alguém iria ganhar uma placa, uma menção
honrosa por um feito no xadrez.
Quanto ao xadrez na cidade,
inegavelmente tivemos um 2013 terrível, com a troca de administração perdemos o
espaço do clube, perdemos um coordenador de xadrez que entendesse e
incentivasse o esporte, pararam os torneios apoiados pela prefeitura, fomos
rebaixados nos jogos da juventude e não tivemos equipe para os abertos. As
coisas só não terminaram de vez porque o Clube, foi atuante, porque eu a
Dulcinéia, Fernando, Adriano, Hércules e outros jogadores, não mediram esforços
para promover eventos e o ensino. Agora temos outra realidade, além do Lance
Mágico o professor Jerry Pilati conquistou uma sede para o clube, e um amplo
espaço para dar capacitação de professores e promover eventos, aliado a isso a
Secretária de Esportes já sinalizou no sentido de apoiar o xadrez, inclusive já
voltamos a representar a cidade no paranaense de menores, conquistando alguns
bons resultados, se conseguirmos manter o ritmo em breve faremos frente as
grandes cidades novamente.
8. Outra grande celebridade mundial, o ator Arnold Schwarzenegger,
promoverá no Brasil o "Arnold Classic Brasil", de 25 a 27 de abril,
no Rio Centro. O ator, um grande amante do xadrez, fez questão de incluir a
modalidade entre os eventos que promoverá. Você acha que isso ajudará o xadrez
conquistar novos investidores e com isso alavancar ainda mais a modalidade no
país?
Com certeza ajuda, fale bem, fale
mal, mas fale... O Xadrez só vai ser levado a sério quando pessoas importantes
levarem ele a sério, quando a mídia se sentir confortável pra falar de xadrez
sem ser criticada por falar errado o nome da jogada, ou por errar o evento
etc... Precisamos todos ser mais tolerantes, e mais, precisamos pensar sempre
que não interessa sobre o que estão falando, mas que estão falando de xadrez.
Outro aspecto é que dificilmente o xadrez vai ser popular enquanto os jogadores
de elite não forem populares, a impressão que fica é que quanto mais o cara
sobe o nível mais ele sobe o ego e mais distante ele fica de quem está lá
embaixo, assim fica difícil criar ídolos e divulgar o xadrez. Penso que falta um pouco da responsabilidade
de campeão para os enxadristas, de saber que ao chegar no topo ele tem o dever
de contribuir para que o esporte cresça, penso que não custa nada para um GM ou
MI que vive do xadrez, sair pelo brasil promovendo simultâneas dando palestras,
jogando torneio abertos, porque na pior das hipóteses isso voltaria em alunos
ou em patrocínio, agora me diga quem que vai querer patrocinar um cara que não
aparece, num esporte que não é tão popular... Faça uma pesquisa, pergunte para
100 pessoas fora do xadrez, quem é Rafael Leitão? Ou Giovani Vescovi, ou
Gilberto Milos? Penso que antes de querermos ser fortes como esportistas
deveríamos pensar em tornar o esporte forte.
Mas as coisas estão melhorando muito, principalmente no Paraná, com o
Bolivar, com o Wilson, com o Rogério, e outros que além de promoverem o xadrez
em suas cidades buscam torna-lo acessível a todos.
9. Francisco Beltrão foi por
muito tempo uma das maiores referências em xadrez escolar no Brasil, inclusive
com um dos maiores professores desta área, Professor Jerry Pilati, sendo o
responsável pela tradução e divulgação do livro "Por que Xadrez nas
Escolas?", de Uvêncio Blanco. Qual sua participação neste projeto?
Não posso
ganhar o crédito por algo que eu não fiz, o Jerry fez história na cidade e no
Estado, lutou muitas vezes contra tudo e contra todos, fez com que por 12 anos
o xadrez fosse uma espécie de segundo esporte da cidade, atrás apenas do
futebol, lançou o livro, que é uma referência nacional, e fez tudo isso
sozinho. No máximo servi de incentivo.
10. Quais
seus planos futuros em relação ao Xadrez?
Antes mesmo de vencer o Carlsen, criei o Lance
Mágico. Quero convencer as pessoas que o xadrez desenvolve lógica, velocidade
de raciocínio, calculo memória, e muito mais... Temos o site www.lancemagico.com, onde tem mais
informações, pretendemos atingir mais de uma centena de alunos e promover
inúmeros eventos.
Pessoalmente quero disputar algumas competições,
como continental, brasileiro sub 26, e jogos abertos se possível.
Considerações Finais.
Por fim quero agradecer a todos
que tornaram este sonho possível, a quem jogou a simultânea e endureceu o jogo,
(pois não se vence sozinho), quero agradecer aos amigos, e em especial a quatro
pessoas, a minha noiva e companheira Laryssa Borghezan, que esteve junto nesse
e em muitos outros momentos marcantes da minha vida. Ao Professor Jerry Pilati,
por nunca ter perdido as esperanças com o xadrez, por ter ajudado muito na
divulgação e por ter sido como um pai, e a Dulcinéia Betti e o Rodrigo Merlo, que desde o início acreditaram
em mim, no projeto Lance Mágico, e no xadrez.
Agradeço o convite do Maurides, é
uma honra dividir este espaço do Blog que já teve inúmeras celebridades entrevistadas,
e espero que após este “milagre” todos nós enxadristas passemos a acreditar
mais no impossível durante as partidas, no tabuleiro e na vida, desafiar menos
os outros e mais nós mesmos, esquecer o passado e o futuro, e procurar o Lance
Mágico de cada posição.
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